VESTINDO A PAIXÃO

SIMBOLISMO


No dia 4 de Agosto de 2010, a Praça da Independência ficou “pintada” de branco e preto. Mas, não era uma obra da Prefeitura, tampouco uma foto antiga. E, sim, um símbolo da alegria de torcedores do Santos após a final da Copa do Brasil. O Santos foi campeão e o torcedor já podia tirar a camisa do armário. Algumas ainda empoeiradas, outras recém-compradas, mas todas, sem exceção, vestiam a alegria de torcedores apaixonados em um local tradicional para comemorações.

No dia seguinte, os mesmos voltaram a ser trabalhadores, cidadãos, guardando novamente seu orgulho no armário. Ou pelo menos 90% dele, pois agora isto não estava tão visível, transparecendo apenas em sua fisionomia.

Mas, por que não damos tal valor a uma calça, um tênis ou até mesmo a uma camisa comum?

Não. A alegria não estava impregnada na camiseta, mas seu simbolismo sim. A camiseta de um clube de futebol não carrega apenas um escudo bordado, mas também traz consigo, impregnado no mesmo, o peso da história, da alegria das conquistas, do choro das eliminações, de sentimentos compartilhados entre os torcedores no decorrer das décadas; reforçando a identidade que faz com que se percebam integrantes de uma “nação”.

O pai (ou qualquer outro familiar) bem que tenta “fazer a cabeça” do filho. Ainda na maternidade, já coloca na porta do quarto um enfeite com o seguinte aviso: “Nasceu mais um santista”, por exemplo. Porém, se a família for composta por membros de outras torcidas, a concorrência será acirrada. E mesmo se todo o grupo familiar torce pelo mesmo time, não é garantido que o recém-nascido seguirá o mesmo caminho.

Isto acontece porque há outras forças em jogo que possam servir de modelo a ser seguido. Evoca-se, em tal raciocínio, a Teoria da Modelagem. Neste sentido, a criança pode identificar-se com um modelo de ação e passar a adotá-lo. Ou seja, torcer por qualquer outro time. Não dá para esquecer o papel da mídia como uma fonte de modelos inesgotável.

Neste “empurra-empurra” de símbolos compartilhados e transmitidos pelos membros de determinada cultura, o fator psicológico do individuo não deve ser menosprezado. Ou seja, o meio cultural determina comportamentos, valores, modos de pensar e etc, mas o ser humano, como agente histórico, é dotado da capacidade de criar, conscientemente, a própria cultura e transformar a realidade em que vive.

Há, portanto, um processo de internalização dos símbolos, cujos significados são compartilhados pelos membros de determinado grupo social, que dialeticamente trabalhados pela psiqué de um torcedor, resulta num padrão de comportamentos. Como, por exemplo, o fanatismo ou a violência entre as torcidas organizadas. Talvez, a formação da identidade como nação seja o resultado disso.

O conceito de nação é relacionado, por definição, ao conjunto de pessoas que são unidas por uma mesma cultura. Como no âmbito da sociedade em que, muitas vezes, o excesso de patriotismo, de zelo por determinadas tradições, dá margem a idéias fascistas e xenófobas.

Com as torcidas, ocorre a mesma coisa. Guardadas as devidas proporções, de certo modo, elas são grupos de indivíduos que compartilham uma espécie de cultura própria e, naturalmente, ocorre a rejeição das outras, tidas como inferiores. Daí surgiria a violência das torcidas organizadas, esquadrões dispostos a eliminar os “inimigos” (torcedores rivais). Então, a camisa, ou melhor, o escudo do time seria a bandeira a ser honrada e defendida.

Isso quer dizer que os males da sociedade determinam os tipos de torcedor e os significados dos símbolos que uma camisa evoca. Porém, indivíduos com a “cabeça boa”, sem nenhum desses distúrbios da vida em sociedade, ou seja, conscientes, terão uma relação muito mais saudável com o que seu time do coração simboliza.

PAIXÃO QUE SOBREVIVE

Alguns dos amantes do futebol e sua história têm o hábito de guardar camisas. São aqueles que não vivem só de comprar, mas também permanecem no estádio depois do jogo, a fim de conseguir uma camisa do jogador preferido (costume de alguns atletas após o apito final). Aquelas camisas representam muito mais do que o número ou nome na parte de trás da camisa. Vai além. Significa acontecimentos, emoções; enfim, momentos que , de alguma forma, marcaram suas vidas para sempre.

E é esse forte sentimento que mantém os encontros de colecionadores de camisas. Isso ocorre em todo o país, entretanto, é mais comum em São Paulo, Porto Alegre, Florianópolis, Rio de Janeiro, Curitiba e Recife. Na capital paranaense, por exemplo, aconteceu, em Setembro, o 4º Encontro de Colecionadores de Camisas de Curitiba.

Torcedores fanáticos tiveram a oportunidade de conhecer camisas históricas, usadas nas décadas de 70 e 80 por jogadores de Atlético, Coritiba, Colorado, Pinheiros, Londrina e Paraná. Os 40 colecionadores também relembraram craques e jogos de extrema importância e emoção.

Entre as peças, algumas relíquias da época em que os uniformes eram menos sofisticados e muitos não contavam nem com as marcas dos fabricantes. E também modelos mais recentes de clubes da capital e do interior, como União Bandeirante, Arapongas, Matsubara, Cambé e Rio Branco.

Além da exposição e dos debates, haverá espaço para a troca e comercialização de camisas de clubes nacionais e estrangeiros. A estimativa é que mais de 500 modelos diferentes estejam disponíveis para negociação.

Um dos organizadores, inclusive, é jornalista. Trata-se de Felipe Lessa. “Conhecemos colecionadores que foram adquirindo essas camisas ao longo dos anos. Tenho várias do Londrina; outros colecionam do Atlético, do Coritiba… Para o encontro, juntamos todas essas coleções”, conta Felipe.

Além de exposição, troca e comercialização de mais de 500 modelos diferentes, o encontro também serviu para os participantes debaterem a possibilidade de encontros regionais e a criação de uma associação. O objetivo é incentivar o diálogo entre colecionadores de todo o Brasil.

NO COMÉRCIO

A paixão incondicional dos torcedores por trás de cada camisa ficou tão visível e escancarado, que os clubes-empresas (hoje, mais empresas do que clubes) resolveram ganhar dinheiro em cima disso. No maior estilo “espreme até sangrar”, os clubes de futebol vivem inventando camisas comemorativas de títulos e épocas passadas; além, é claro, do uniforme oficial, com novos modelos lançados todo ano. Isto, aliás, é o que garante boa parte da renda.

E não foram apenas os dirigentes de clubes que perceberam essa mina de ouro por trás dos uniformes. Os vendedores ambulantes e camelôs também exploram este sentimento através de cópias, a maioria visivelmente amadora.

E o sucesso foi tão grande que criaram, ainda, uma divisão categórica de preços, equivalente à qualidade de cada cópia. Hoje, uma camisa escancaradamente mal feita, fora dos moldes do perfil original do uniforme copiado, mas confortável no corpo, custa de 10 a 20 reais.

Entretanto, se quiser comprar o que eles chamam de “Réplica”, uma camisa esteticamente idêntica à camisa de uma loja oficial (mas, obviamente, não com a mesma qualidade), terá que desembolsar, no mínimo, 50 reais! Nada assustador, se compararmos ao preço de uma original do ano. Seu preço, hoje, está em torno de 200 reais; equivalente a 400% do valor da “Réplica”.

Porém, a estratégia mais interessante e criativa fica por conta dos dirigentes do Real Madrid. O clube espanhol é famoso por investir milhões por ano em contratações a jogadores “badalados” e, consequentemente, caros. Mas, essa não é a questão.

Consciente de que o retorno financeiro em campo não é certo, o Departamento de Marketing madrilenho põe, à venda, camisas oficiais com o nome do atleta nas costas (acima do número), logo após a contratação do mesmo. A torcida, tradicionalmente fanática e hoje ciente do objetivo da venda, compram em demasia. Cada torcedor compra ao menos uma camisa. E assim, eles têm a certeza que o clube seguirá com o mesmo perfil altamente investidor e a diretoria têm a convicção do retorno do dinheiro aplicado, dentro e fora de campo.

SÍMBOLO QUE ATRAVESSA FRONTEIRAS

O simbolismo das camisas de futebol está tão visível, que afetou até mesmo o dialeto, a língua popular. Hoje, é muito comum ouvir que os patrões preferem funcionários que vestem a camisa da empresa, ou seja, que lutam pela empresa como se esta fosse sua, também.

Isso quer dizer que simbolismo da camisa de futebol deixou de ser unicamente do torcedor. Aqueles que apenas compreendem esta paixão característica do brasileiro fizeram com que esta ultrapassasse as fronteiras do linguajar futebolístico e se introduzisse nos diálogos cotidianos. Mas, hoje, quando se fala em vestir a camisa, ainda que o foco seja o trabalho, o emissor se imagina vestindo um uniforme de futebol com o nome da empresa e entrando em campo a fim de defender seu escudo, ops… nome.

O MAIOR DE TODOS, ATÉ NA CAMISA

Não há como falar de simbolismo sem falar de Pelé. Antes do “Rei do Futebol”, a numeração das camisas eram distribuídas aos jogadores, conforme suas respectivas posições. Eis que o melhor atleta do século jogava como meia-atacante, posição que condizia com o número 10.

Depois de brilhar nos gramados do mundo inteiro, Pelé conseguiu transformar uma simples camisa em símbolo mundial de extrema qualidade e conseqüente responsabilidade. Antes dele, a camisa 10 era apenas um número; agora, ela é entregue ao melhor jogador de cada time. De preferência, a um ídolo da torcida, assim como o Rei foi para o mundo.

Esta reportagem foi produzida em 2010 e teve a participação de Carlos Noberto

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